Reinventar Portugal: Universidade

Diário Económico, 12 de Julho de 1996

Por A. Dias de Figueiredo
Departamento de Engenharia Informática
Universidade de Coimbra

Quanto tempo sobreviveria, sem entrar em falência, uma empresa que rejeitasse sistematicamente 35% da sua matéria prima, desrespeitasse em 25% os seus prazos de entrega e mantivesse insatisfeitos 50% dos seus clientes (...)?

Acarinhada nos anos sessenta como a solução milagrosa para a igualitarização da sociedade e para o crescimento da economia, a Universidade foi-se transformando, com o correr dos anos, em vítima acabada do seu próprio sucesso. A explosão do número de universidades, a avalanche de estudantes, e os hábitos adquiridos num período em que os universitários se consideravam pagos para investigar viriam a desencadear a crise que a Universidade presentemente atravessa.

Os estudantes queixam-se de salas superlotadas, relações impessoais com os docentes, métodos de ensino massificados e anti-pedagógicos, exagero da teoria relativamente à prática, arbítrio nas avaliações, falta de coerência dos planos de estudo, e inadequação entre a formação e a realidade do mercado de trabalho. Os empregadores, por seu turno, queixam-se da deficiente preparação experimental dos recém-licenciados, da sua pobreza de atitudes e valores para o exercíco responsável da profissão, e da ausência de influência das empresas na definição dos planos de estudos. Os governos, e os contribuintes, que pagam a factura, querem saber como é que os dinheiros estão a ser gastos, e reclamam contra o amadorismo da gestão universitária.

O problema, aliás, não é só nacional. Há alguns anos um destacado dirigente da National Science Foundation, a principal entidade financiadora das universidades nos Estados Unidos, recorria à analogia empresarial para perguntar quanto tempo sobreviveria, sem entrar em falência, uma empresa que rejeitasse sistematicamente 35% da sua matéria prima, desrespeitasse em 25% os seus prazos de entrega, mantivesse insatisfeitos 50% dos seus clientes, e aumentasse o custo dos seus produtos a ritmos muito superiores aos da inflacção.

A lenda de Fénix

Para descrever a desejável reinvenção da Universidade, costumo usar a lenda de Fénix, a ave secular que se consome nas chamas que ela própria ateou, e renasce, das suas próprias cinzas, conciliando a energia e criatividade da sua juventude com a maturidade e saber do seu passado. É que, ao contrário do que acontecia há trinta anos, a Universidade vai mesmo ter que se reformar (ou reinventar). Caso, contrário, sujeita agora à concorrência global, numa sociedade aprendente, multimediatizada e prolongada para o ciberespaço, estará condenada à extinção [1].

De facto, há trinta anos nenhuma destas condicionantes existia. Era possível a uma universidade ignorar todas as formas de concorrência, e entregar-se rotineiramente a uma educação massificada. Tal como acontecia a muitas empresas da mesma época, podia dar-se ao luxo de oferecer com arrogante displicência os serviços costumeiros, de qualidade desigual e por vezes duvidosa, certa de que os seus clientes, por falta de alternativa, não reclamariam nem iriam procurar abastecer-se a outro lado. Tudo isso mudou, nos nossos tempos! Não é, possível, hoje, a uma universidade, talhar o modelo da sua oferta de educação na ignorância da oferta e da procura num mundo globalizado: oferta e procura de educação superior; mas também, e sobretudo, oferta e procura dos profissionais que dela saem.

O primado do cliente

Se a universidade tem, de facto, que se reinventar, quem serão, então, os principais agentes desse renascimento? A resposta, de tão simples, pode parecer insólita: os professores e os estudantes! Estou certo de que chocarei muitos dos meus colegas ao colocar os estudantes como parceiros indispensáveis do renascimento universitário. Serei, mesmo, talvez, acusado de populismo inoportuno, agora que se ouvem crescer vozes de descontentamento relativamente àquilo que é descrito como o excesso de representatividade dos estudantes em alguns dos orgãos universitários. E, no entanto, esta minha proposta nada traz de novo relativamente ao que se passou nos primórdios das universidades. De facto, foram esses mesmos agentes que há um milénio fizeram nascer as primeiras universidades: Bolonha, tida como a primeira digna desse nome, surgiu como uma associação de estudantes; e Paris, citada como a segunda, resultou de uma associação entre professores e estudantes.

Não se pense, no entanto, que tento raciocinar por analogia para sugerir que o renascimento da Universidade deva recorrer à fórmula que foi usada para o seu nascimento. Nada disso! O que penso é que, numa época em que imperam as leis do mercado, as universidades terão que cuidar prioritariamente da forma como se relacionam com os seus clientes [2]. Ora, como é hoje sabido, as empresas que criam para si próprias um futuro de sucesso são as que procuram criar um futuro melhor para os seus próprios clientes, e, sempre que possível, com eles.

Um modelo empresarial de estratégia, qualidade e ética

Esta centralidade que atribuo ao cliente torna óbvio que defendo, para a Universidade, um modelo empresarial. Não se trata, no entanto, de um modelo empresarial qualquer! O modelo que defendo enfatiza uma permanente intencionalidade estratégica, uma suprema preocupação com a qualidade, e uma postura ética irrepreensível.

Ao referir-me a uma intencionalidade estratégica, entendo-a como a tal capacidade para criar um futuro melhor para os seus próprios clientes, e sempre que possível com eles. É evidente que a intencionalidade estratégica pressupõe os ingredientes de uma postura estratégica agora aceite como convencional: visão, missão, valores, fins, factores críticos de sucesso. Mas exige mais: exige uma capacidade sistemática para imaginar um futuro tornado possível pelos progressos tecnológicos, pelas mudanças dos estilos de vida e das formas de trabalhar, pela globalização das economias e pela explosão das mobilidades físicas e virtuais. Exige uma libertação de visões estagnadas sobre o que é o mercado da educação superior e sobre que tipos de serviços devem ser oferecidos. Exige uma reconcepção desses serviços para encontrar novos equilíbrios de custo/desempenho. Exige, finalmente, um exercício permanente da criatividade, uma abertura para novos paradigmas, e uma apurada sensibilidade às necessidades humanas.

É neste espírito que devem ser questionadas vários dos padrões universitários tidos como eternos, e que agora começam a reclamar novas perspectivas: a Universidade definida em torno de um conjunto de conhecimentos especializados detidos pelos seus académicos; a Universidade dos pequenos grupos de trabalho orientados por docentes; a Universidade das bibliotecas departamentais; e a Universidade como local de passagem de jovens adolescentes que procuram competências e credenciais para entrarem no mundo do trabalho.

De facto, a comunidade local de conhecimentos especializados, que constituía uma universidade, abriu-se subitamente para o mundo e tornou-se parte de uma comunidade global de especialistas ligados entre si pela Internet, por telefone, por fax e por reuniões e conferências dos mais variados tipos. Os pequenos grupos de trabalho orientados por um docente estão a tornar-se economicamente incomportáveis, e começam a dar lugar a alternativas de orientação colectiva associada a trabalhos de grupo. As bibliotecas departamentais reconfiguram-se, para se tornarem meros complementos de bibliotecas digitais universais, acessíveis a partir de cada posto de trabalho. Finalmente, numa época em que as competências profissionais se desactualizam a ritmos vertiginosos, as universidades, até aqui concentradas em exclusivo sobre os 4 a 6 anos que tradicionalmente precedem a entrada no mundo do trabalho, surgem como locais de eleição para cobrir uma nova procura, focada agora sobre 45 anos de vida profissional.

Por outro lado, quando acima me refiro à qualidade dos serviços prestados pela Universidade não me refiro a uma qualquer qualidade, apreciada por critérios vagos e subjectivos. Refiro-me àquilo que se convencionou designar por qualidade total: uma forma de gestão da qualidade que pressupõe o envolvimento activo de todos os recursos humanos e dos clientes, a optimização dos custos, a melhoria na organização e nas funções, desde a concepção até à prestação do serviço, a optimização da função produção, e a garantia do produto/serviço final.

Refiro-me, também, a uma qualidade permanentemente sujeita a escrutínio, auto-avaliável, entendida como instrumento capaz de garantir a excelência dos processos, suportada por uma cultura de melhoria contínua, e, insisto, baseada no envolvimento de todos os parceiros. Refiro-me, em particular, a um conceito de qualidade que permita conhecer o sucesso na satisfação das necessidades e expectativas dos clientes e parceiros, na melhoria dos processos chave, e na própria identificação do sucesso com que os liders personificam e comunicam visão, missão, valores e fins.

Finalmente, quando me refiro a uma postura ética irrepreensível procuro, não só reforçar, ao nível dos valores, o lugar central a atribuir à qualidade, que se pretende total, mas também estabelecer o contraponto a modelos empresariais ultrapassados, como os que atraem os clientes para embustes, ou os que usam de forma sinuosa a arma do marketing para distorcer as regras do mercado [3].

Arquitectura de informação

Uma universidade fundada sobre um paradigma empresarial que consagra a estratégia e a qualidade tem, necessariamente, que pôr ao serviço do seu modelo do negócio uma solução integrada de sistemas de informação. A arquitectura de informação que resultará desse modelo será tão importante para o sucesso da estratégia e para a gestão da qualidade universitária como a arquitectura física das instalações dos campus universitários era para o sucesso das universidades de há trinta anos.

Por outro lado, com o prolongamento das universidades para o ciberespaço o campus adquire uma dimensão virtual que a concepção da arquitectura de informação deverá contemplar. Os campus universitários, enquanto espaços onde se desenvolve o dia-a-dia das actividades académicas, têm merecido, da parte dos arquitectos, particulares cuidados de concepção, que adaptam os movimentos e vivências que neles decorrem aos modelos de universidade para o qual são concebidos. Do mesmo modo, as arquitecturas de informação das universidades reinventadas devem agora contemplar as novas exigências, vivências e hábitos comunitários da realidade do presente.

Não deixa de ser curioso, no nosso meio, que se possam gastar centenas de milhares de contos nos edifícios de uma universidade, e se possa ignorar depois por completo esse outro edifício, agora tornado indispensável, que é o sistema de informação que lhe deveria servir de sustentáculo.

O insustentável peso da Administração Pública

É evidente que uma Universidade que pretenda pôr em prática um modelo empresarial feito de estratégia e qualidade não pode ser gerida como uma repartição do Estado. Nenhuma empresa, pública ou privada, resistiria a tal colete de forças sem entrar rapidamente em falência. Por alguma razão as empresas públicas têm um estatuto jurídico que as liberta das regras paralisantes da Administração Pública.

Para que a Universidade Pública possa, de facto, reinventar-se, é indispensável que possa articular agilmente as suas opções estratégicas, e passá-las à prática sem impedimentos e delongas artificiais. Deverá, evidentemente, ser responsável pela correcção dos seus processos e pela racionalidade económica das suas acções, tal como pela qualidade da sua oferta. E deverá ser exemplarmente penalizada se não cumprir. No entanto, é imperioso e urgente que possa fazer as suas opções em matéria de recursos humanos e de aquisições sem o espartilho paralisante que tem contribuido para a mediocrizar.

Face às regras da Administração Pública, é caso para pasmar que as universidades públicas portuguesas tenham conseguido, apesar de tudo, ir cumprindo. Mas uma atitude concorrencial pro-activa e ganhadora não se compadece com a burocracia e passividade para que a Universidade Pública portuguesa foi remetida. Se queremos que a Fénix renasça é preciso que as chamas possam ser ateadas. Ora as chamas, segundo conta a lenda, provinham da luz solar. Corte-se a luz, espartilhe-se a iniciativa e a paixão, e não haverá Universidade que renasça, em Portugal, para o dealbar do século XXI.

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[1] A avaliar por alguns sintomas que vamos observando, poderá, no seu percurso de decadência, passar por várias metamorfoses de degeneração: ora com o crescimento inorgânico dos seus quadros; ora com fundamentalismos que a tornam uma caricatura de si própria; ora com diversificações oportunistas e acéfalas da sua oferta; ora com arremedos de modelos empresariais passados que a tornam ridícula e travesti.

[2] A forma como coloco a questão poderia sugerir que, na minha óptica, apenas os estudantes seriam clientes da Universidade. Não é assim: nas universidades da nossa época também são clientes as empresas e outras organizações que empregam esses estudantes, bem como as que contratam serviços às universidades. Não me refiro a elas aqui porque, ao centrar-me apenas na função educativa da Universidade, procuro evitar entrar em considerações que alongariam o texto para além da extensão recomendada.

[3] Basta lembrar a publicidade enganosa de algumas universidades privadas, ou o exemplo do instituto público que há dias, no suplemento exclusivo que publicava num semanário, deturpava indicadores para se arvorar em campeão nacional.