Balanço final do encontro

Nova Universidade, Nova Informação: Bibliotecas em Rede

Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Lisboa, 8 e 9 de Novembro de 1995

Por A. Dias de Figueiredo
Departamento de Engenharia Informática
Universidade de Coimbra

Num balanço expedito do nosso encontro, podemos afirmar que foi muito conseguido, activo, participado, e . . . simbólico. Os simbolismos, como todos nós sabemos, umas vezes retratam fielmente a realidade, outras vezes brincam com ela! Tivemos aqui as duas coisas! O simbolismo mais expressivo dessa ambiguidade foi, talvez, o de o homem mais electrónico do mundo, Bill Gates, ter comprado num leilão um dos livros mais raros e valiosos do mundo. No contexto em que foi evocado, o simbolismo sugeria que até o homem mais electrónico do mundo respeitava, devotamente, o livro! Eu arriscava-me a fazer outra leitura: será que Bill Gates comprou o dito livro ... para o ler? Não terá querido, simplesmente, adquirir um valioso troféu? E, ao pensar em troféus, não posso deixar de recordar a imagem-tipo do caçador de feras, posando para a eternidade com o pé simbolicamente apoiado sobre a fera ... abatida!...

Foi essa, em boa verdade, a imagem que nos deixou o debate sobre "O livro: uma espécie em extinção?". De facto, a ideia que ficou no ar foi que o livro nunca mais seria o que é! A leitura sequencial ainda poderia aspirar a alguma longevidade sobre suporte papel, mas a migração para novos suportes, e, com ela, a reformulação do conceito que hoje temos de livro, era inevitável... Perdoem-me se discordo abertamente desta visão! Penso que o livro é, acima de tudo, um bem cultural. E a vida e morte dos bens culturais segue desígnios insondáveis! Sabemos que os jornais não morreram quando surgiu a rádio, e que a rádio não morreu quando surgiu a televisão (encontra-se, por sinal, bem viva, apesar da morte tantas vezes anunciada pelos entusiásticos evangelistas dos primórdios da TV). Do mesmo modo, a pintura não morreu quando surgiu a fotografia, e a fotografia não morreu quando surgiram o cinema e o vídeo, tal como a escultura não morreu quando surgiu a modelação gráfica tridimensional. São, todos eles, bens culturais com discursos e contextos próprios. Se é certo que as retóricas de uns e outros se cruzam (quem não fica fascinado ao encontrar em textos escritos transposições metafóricas riquíssimas dos "zooms", panorâmicas e "flash-backs" do discurso do cinema?), certo é, também, que essa fertilização cruzada só contribui para enriquecer e longevizar cada um. Há, penso eu, uma única coisa que destrói os bens culturais: a falta de cultura! Por isso me sinto tão frustrado quando vejo estas coisas a serem discutidas, apressadamente, apenas ao nível das tecnologias, esquecendo o âmbito próprio em que deverão ser situadas.

Até em Portugal, e apesar da falta de agressividade dos nossos editores e livreiros, penso que o livro poderá sobreviver e expandir tranquilamente a sua presença durante muitos anos! Dou um exemplo (da tal falta de agressividade, e de uma situação em que o livro ocupa um sector de mercado em que é, aparentemente, insubstituível). Quando nos deslocamos nos transportes públicos de Londres, Paris ou Copenhague, observamos que a maior parte dos passageiros ocupa os tempos mortos da viagem ... a lêr. Sabendo nós os milhões de passageiros que se deslocam nestes transportes, podemos fazer uma ideia do mercado que está em jogo! O mesmo acontece nas salas de espera, sejam elas de estações ou de hospitais. Em Portugal, pelo contrário, os portugueses que esperam parecem perús em capoeiras: pescoços erectos, e olhar vazio, fixando abstractamente o infinito! Sabendo nós como o nosso público é influenciável pela sedução televisiva, podemos fazer ideia do resultado que não teria um "clip" que sugerisse (sem actores cómicos!) que parece bem ler nos tempos mortos em lugares públicos, ou que parece mal não o fazer! Não sendo os nossos editores e livreiros capazes de tomar a seu cargo esta acção, então que o faça, com urgência, o Ministério da Cultura, a bem da tão mal tratada cultura do livro em Portugal!

A mensagem de que as questões em jogo não eram só tecnológicas surgiu da audiência, logo nas primeiras intervenções. E não pude sentir-me mais de acordo: como dizia Heidegger, "a essência da tecnologia tem pouco que ver com a tecnologia". Também da audiência surgiu a questão do acesso a "nichos" de informação, que permitiu ao orador recordar que a Internet não é mais do que um conjunto infindável de nichos de informação. O diálogo, muito construtivo, entre audiência e oradores foi uma das marcas do encontro, que assim reproduziu, em sala, uma das grandes virtualidades da Internet: a da construção colectiva de saberes, pela interacção mútua, num espaço de diferenças e semelhanças.

Infelizmente, a questão dos múltiplos nichos de informação acabaria por só ser retomada perto do fim, deixando por explorar um aspecto crucial da vivência em redes. A da ansiedade, quando não confusão total, que pode ser provocada por tanta abundância e variedade. É neste capítulo, penso eu, que pode residir um dos grandes desafios aos bibliotecários do próximo futuro. Sendo certo que a tecnologia nos oferece excelentes agentes informáticos, inteligentes ou não, para simplificar e acelerar os processos de pesquisa, o certo é, também, que o elemento humano continua a ser indispensável. Como dizia Naisbitt, na sua identificação das megatendências da nossa época, "high-tech calls for high-touch": a alta tecnologia pede muito calor humano! Quanto mais tecnológica é uma sociedade, mais necessita de compensações ao nível dos valores humanos e da afectividade. É nesse papel que os bibliotecários podem surgir como elementos de equilíbrio, como forças unificadoras, no conciliar das pessoas com a tecnologia, da simplicidade com a complexidade, da unicidade com a multiplicidade, do individual com o colectivo.

Nessa ansiedade e confusão, de quem está sedento de saber mas afogado em informação, a própria cultura tem um papel importantíssimo a desempenhar, como filtro da complexidade, que permite, em cada contexto, distinguir o que é importante do que não o é. É nessa cultura, que todos estamos a construír em torno das redes, que vai despontando uma inteligência colectiva e vai surgindo um novo paradigma para a função das próprias bibliotecas: o "just in case" do passado (adquiria-se um livro, ou assinava-se uma revista, para o caso de um dia ser preciso) deu lugar ao "just in time". O isolado deu lugar ao colectivo. Do passivo (as bases de dados inertes) passou-se ao activo, e do activo passou-se ao interactivo: os motores de pesquisa, os mecanismos de diálogo, e a interacção entre os utentes são instrumentos de uma nova vivência, multifacetada, da relação com a fonte de informação, seja ela livro, revista, ser humano, ou instituição.

Dentro deste novo paradigma, fomos avisados, durante o encontro, de uma grande ameaça: a de que os Bill Gates, as grandes operadoras de comunicações, e os grandes canais de TV nos dominem. Estou de acordo, mas juntaria as grandes indústrias culturais (Hollywood, Disney, Time Warner), que se desdobram, já hoje, em apostas e alianças para dominarem o grande mercado da cultura como bem de consumo. Tomámos boa nota dessa ameaça. Mas as ameaças têm sempre duas facetas: a faceta derrotista, de quem prefere baixar os braços; e a faceta lutadora, de quem considera que as ameaças são também oportunidades. Por isso estamos aqui, para nos batermos por um projecto colectivo que constitui, afinal, uma grande oportunidade: o projecto de uma Rede Nacional das Bibliotecas Universitárias.

Os benefícios que retiraríamos desse projecto foram assim enunciados:

· educação mais activa, menos apoiada em "sebentas" e passividade, mais suportada pelo acesso a documentos autênticos;

· investigação científica mais rica, simultaneamente mais nacional e mais internacional, e melhor posicionada para inovar;

· maior relevância da universidade para a indústria;

· difusão destas tecnologias (e de toda a sua envolvente cultural e social) junto dos sectores político, económico e social do país (envolvendo uma aprendizagem alargada sobre questões de natureza ética, legal, de segurança, normalização, privacidade, e propriedade intelectual);

· contribuição para a criação de uma força de trabalho alfabetizada em termos tecnológicos (o que envolve, por sua vez, questões relacionadas com desenvolvimento curricular, desenvolvimento de materiais, e formação);

· contribuição para a criação de uma força de trabalho tecnicamente competente;

· estímulo à I&DT industriais (particularmente urgente em Portugal);

· eventual estímulo ao investimento estrangeiro directo;

· desenvolvimento de uma infraestrutura.

A estes benefícios, permito-me juntar outros três, que, não tendo sido explicitamente mencio-nados, se me afiguram, no entanto, de importância chave:

· a presença activa do saber científico português na cena internacional;

· a presença da cultura e língua portuguesas no mundo, como veículos estratégicos para a expansão da nossa economia nos mercados mundiais;

· a construção de uma comunidade universitária nacional, fortemente ligada à sociedade civil, capaz de partilhar as fontes de saber que hoje não são divulgadas (não só relatórios internos, dissertações ou teses, mas também pessoas, especialistas, grupos), e disposta a desenvolver - em torno dessas fontes, e de repositórios partilhados de fontes internacionais - uma capacidade efectiva de colaboração e criação de saber.

Para que estes benefícios pudessem ser obtidos, o encontro identificou um conjunto de necessidades:

· a existência de uma rede académica de banda larga;

· a criação de um sistema central de metainformação (eventualmente conseguido na sequência de um concurso público internacional);

· a instalação de um sistema coordenado de acesso a documentos digitais (serviços de acesso, "juke-boxes" de CD-ROMs).

· os mecanismos fundamentais de uma rede nacional de bibliotecas universitárias:

· catálogos electrónicos,

· acesso a recursos externos (catálogos, obras de referência, periódicos electrónicos, documentos de ensino), e

· acesso a recursos internos (dissertações, artigos, relatórios internos, documentos de ensino).

Para além destas necessidades encontra-se, naturalmente, a necessidade imperiosa de uma abordagem estratégica rigorosa e fundamentada, que vá estabelecendo e redifinindo a missão da rede de bibliotecas, os seus objectivos estratégicos, as suas forças e fraquezas, os seus factores críticos de sucesso, as tácticas de implementação e exploração, os aspectos humanos e organizativos, e as próprias arquitecturas de informação. Este cuidado é particularmente importante em Portugal, onde as bibliotecas universitárias estão pulverizadas, onde não está institucionalizado um esforço colectivo e continuado de colaboração e diálogo a este nível, e onde se padece do espartilho paralizante da Administração Pública. Parece ter sentido, neste contexto, a criação de um grupo de trabalho permanente que se debruce sobre o conjunto das questões em aberto, sem esquecer as relativas a organização, normalização, desenvolvimento tecnológico, financiamento, estatuto e importância da biblioteca no tecido universitário, competências, carreiras e tutelas directas dos bibliotecários universitários, e formação.

A finalizar: as questões políticas! O projecto de que falámos diz respeito a infraestruturas: tecnológicas, humanas e organizacionais. O grande programa nacional de infraestruturas, o programa CIÊNCIA, não contemplou este tipo de infraestruturas. O programa estruturante que se lhe seguiu, o programa PRAXIS XXI, também não. O que desejamos é que, reconhecida que ficou, durante este encontro, a importância de uma Rede Nacional das Bibliotecas Universitárias, ela seja agora apoiada pelo programa PRAXIS. O que pretendemos, afinal, é uma rede de bibliotecas una e solidária, para todos os cientistas, docentes e estudantes portugueses, acessível nacional e internacionalmente, que permita consultar, em directo, a partir de qualquer posto de trabalho, as 300 bibliotecas universitárias portuguesas, renovadas nas fontes de informação que oferecem, e todo o acervo de publicações e fontes de informação internacionais que interessam aos seus utentes.

9 de Novembro de 1995


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